"Ainda que eu falasse a língua dos homens e dos anjos, se não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine."
(I Coríntios 13.1)


terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Um passeio feminino pelo masculino

Seis e quinze da manhã, o celular desperta. Já é possível ver os riscos do sol rabiscados na parede do quarto. Os olhos insistem em permanecer cerrados. O corpo mole teima em se erguer. Não há alternativa. É hora de começar mais um dia. A temperatura deve estar rodeando os vinte e cinco graus. Nada pode ser mais agradável e revigorante do que uma ducha gelada. O cheiro do café toma conta da casa. Mais alguns minutos e estarei pronta. Sete e quinze, monto na bicicleta. Fecho os olhos e a sensação de liberdade é tão real quanto o vento que esvoaça meus cabelos. A terra molhada pelo orvalho exala um perfume encantador, capaz de provocar instantes de paz, como se a vida fosse delicada como os pequenos detalhes perceptíveis apenas com uma porção de sensibilidade.
Dobro a esquina e já posso ver a movimentação. A loja está aberta. Todos estão entrando e tomando suas posições. Antes mesmo de adentrar totalmente, a realidade me diz bom dia. Os pássaros calam-se e toda a área é tomada por gargalhadas e palavrões. A fragrância inebriante de minutos se perde entre os corredores e o que sinto agora é apenas o odor natural da borracha. Não, ao contrário do que pensam, não há nenhuma discussão que explique as gargalhadas ou palavrões. Nem me refiro a um ambiente de reciclagem quando menciono o fedor que vem do estoque. É simples, este é o meu trabalho. Sou vendedora de auto peças e o forte da empresa são borrachas automotivas.
O telefone toca, antes mesmo de terminar a frase decorada que faz parte de minhas funções, sou interrompida por um chucro mandando-me passar a ligação para um vendedor. Com toda educação que disponho respondo prontamente:
- Sim, pode falar.
Uma risada irônica antecede as palavras vomitadas:
- Você é surda minha querida? Quero falar com um vendedor.
Minha mãe me ensinou que devo respeitar a todas as pessoas. A vida me ensinou que minha educação corresponde à que recebo de cada um. Assim, resta-me dizer:
- Não, não sou surda senhor, pelo contrário, me parece que o senhor é que não compreendeu. Sou vendedora, então, em que posso ajudar?
- E desde quando mulher entende de carro?
- Não estou aqui para lhe responder esta pergunta, mas por que não tenta?
Toques estéricos de telefone, homens suados e fedidos fazendo cantadas que causam náusea, sim, pois, são poucas as criaturas do sexo masculino que se portam com hombridade. Esse é só o começo de mais um dia útil em minha vida.
Os ponteiros do relógio parecem passear sem pressa, como se zombassem de mim. Sabe que até fico feliz quando chega um mecânico com uma sacola cheia de mangueiras de radiador, filtro de ar ou tampa de válvula, sem descrição exata, assim me perco entre as prateleiras procurando semelhanças para adaptar. Quando volto ao escritório, me sinto vingada, os ponteiros parecem ter corrido e a hora de voltar para casa está próxima.
São tantos os "causos". Coisas que mais parecem piada. Não daria para contar, levaria muito tempo.
Volto para casa sonhando com o chuveiro gelado. O perfume da terra já não consigo sentir, o da borracha parece querer dominar, assim como os cliente que atendo no balcão.
A estrela que desenha meu quarto só voltará daqui a algumas horas. Por enquanto, deu lugar à lua. A lua, como me encanta! Seu brilho parece envolver todo o quarto, embalando meu sono.
Por que é tão difícil dividir o mesmo espaço e admitir a igualdade? A natureza faz isso. Há o tempo do sol e o da lua. Há o tempo da junção dos dois, o que torna tudo mais intenso. O perigo está em lutar contra isso, pois, no momento em que ocorre a união de ambos, o mais suave dos dois, toma à frente mostrando a sua força.

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